Um pouco de música e chão para existências desviadas

Ontem à noite, precisei interromper minha leitura por conta de uma sublime perturbação: fiquei emocionada com a música que estava tocando na rádio. Confesso que tenho esses arroubos, que mesmo nos momentos mais espinhosos, nas fases menos poéticas da minha vida, minha sensibilidade sempre abana o rabo diante de qualquer osso, qualquer farejar do belo. E pensei de novo nessa culpa cristã que sinto de preencher mais meus dias com beleza.

Escolhi uma forma, digamos, mais política de atuar no mundo, moldei um caminho profissional a partir do pressuposto de que existia muito a ser feito e aperfeiçoado, mais que isso: que transformações profundas eram/são necessárias. Não havia, portanto, tempo a perder com miudezas.

Mas meu coração, afeito a travessuras, sempre me dá rasteiras que me devolvem ao chão, me fazem sentir o cheiro e o gosto do solo que me constitui. E me lembro que humildade vem de humus — trata-se da capacidade de ser terra, chão, raiz — e que arrogância é imaginar ser possível tornar-se o que não se é.

Do habitat por vezes antinatural

Faz quase um ano que não escrevo aqui. O último texto publiquei duas semanas antes de voltar para o Brasil, logo após ter aceitado a proposta inesperada da minha ex-atual-supervisora, que me convidou para reassumir meu posto nove meses depois do meu pedido de demissão. Como o motivo da minha demissão fora simplesmente a vontade de viajar por aí por tempo indeterminado, as portas, que não fechei, de repente se arreganharam na hora certa.

Era mesmo a hora certa. Por mais que ame viajar, que seja viciada nos incômodos, alegrias e vertigens proporcionados pela condição de estrangeira, chega uma hora em que é necessário parar e permitir que as experiências se sedimentem. E, no fim das contas, acho que só quando se volta pro lugar de sempre, pro habitat natural, pra zona de conforto, é que se percebe o quanto tanta coisa mudou pra sempre, irremediavelmente.

homônimas

vivo um susto, vem a dúvida: que foi mesmo que mudou?

no espelho minhas rugas avançam a passos lentos. e eu mal aproveito essa oportuna falta de pressa.
as celulites estagnaram, ou talvez minha miopia não tenha parado de avançar. e eu ainda não aprendi a celebrar a parceria perfeita entre meu tecido adiposo e minhas retinas com defeito.

faço chamada pras marcas do meu corpo e confirmo, elas continuam lá, obedientes e aplicadas:

– Manchinha Da Virilha!, chamo.

– presente!, ela responde.

– Pinta Nas Costas?

– tô aqui!

– Dores?

silêncio até que vem a resposta em coro:

– somos várias. é melhor chamar pelo sobrenome.