Falamos a mesma língua pero no mucho

“É preciso matar a tribo para nascer a nação”, dizia o Samora Machel. A Zita me contou que, na época em que ele governou Moçambique, ninguém falava línguas locais em repartições públicas, havia toda uma construção em torno da identidade nacional e da unidade linguística. Hoje, ela acha tudo muito mudado. Diz que é comum, mesmo nas instituições do governo em Maputo, os funcionários conversarem entre si em Ronga ou Changana, as línguas locais faladas aqui no sul do país. As crianças das zonas rurais, ela conta, onde vive a maioria da população, só falam o português (quando falam) na escola. Em casa, na rua, prevalecem as línguas locais. O Chico já não tem certeza se é bem assim, diz que é preciso pesquisar melhor e checar essas informações.

O Changana é mais falado em Maputo. Nem preciso dizer que não distingo uma coisa da outra, mas sei que, sim, é muito comum, mesmo aqui nas ruas da capital, as pessoas conversarem em outra língua que não o português. Parece que, desde aqueles já distantes anos de discursos do Samora Machel em praça pública, e depois de anos de guerra civil, a tribo reencarnou. Não tenho condições de avaliar qual o impacto disto na vida da nação…

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No sábado à noite, marquei de sair com a Dorien, a holandesa que foi minha vizinha em Santa Teresa e há um ano e meio mora em Maputo. Ela havia combinado com uns amigos de sair pra dançar na Rua Darte, mas antes nos encontraríamos todos em seu apartamento, para bebermos algo e conversarmos um pouco.

Dorien divide um apartamento com duas amigas moçambicanas. Assim que cheguei, vi que falam em inglês entre si. A Dorien fala português bem. Também entende bem. Quando criança, viveu seis anos em Moçambique, depois morou no Brasil e, agora, está por aqui outra vez, trabalhando para uma ONG americana. Eu só converso com ela em inglês quando seus amigos holandeses ou seus pais, que conheci no Brasil e depois encontrei algumas vezes na Holanda, estão por perto. Ainda assim, achei que a escolha do idioma oficial da casa se devia ao fato de ali morar uma holandesa que, bem verdade, apesar do bom português, fala inglês muito melhor.

De repente, a Dorien saiu de perto e as duas moçambicanas continuavam a falar em inglês entre si. Passados uns instantes, comentei que poderíamos voltar a falar a NOSSA língua portuguesa (convinha lembrar, caso elas tivessem esquecido, que eu era brasileira). Foi então que percebi que esse papo de nossa língua não é bem assim… “Morei muitos anos em Nova York e depois em Londres, me sinto mais confortável falando em inglês”, comenta a filha de embaixador. A outra, metade moçambicana, metade belga-congolesa, concordou que também se sentia mais confortável com o inglês.

Logo, outros se juntaram à nós. A primeira a foi uma mocinha mulata que já chegou falando em inglês. Alguns minutos depois descobri que ela também era moçambicana. “E por que você está falando inglês?”, perguntei. “É que meu pai é italiano”, prontamente me respondeu. “E a sua mãe?”, quis saber mais. “É moçambicana, mas só falamos italiano em casa”. Ah… mas então o que o inglês tem a ver com isso?, era a minha questão. Então ela me explicou que também havia estudado em inglês.

Por fim chegaram mais três rapazes, falando em inglês, pra variar. Eu arrisquei palpites: “ok, o branco talvez seja italiano, os dois negros devem ser sulafricanos”. Que nada. Eram todos moçambicanos. As explicações eram sempre as mesmas. Todos haviam morado fora e estudado em inglês.

Eu já sabia que era comum jovens moçambicanos das classes mais favorecidas estudarem nos vizinhos África do Sul e Suazilândia. Mas essa de que não falavam português no próprio país era novidade.

Por fim, o Jorge, primo da Yara, minha amiga moçambicana que foi minha amiga de faculdade, me ligou e, por sugestão das próprias anfitriãs, pedi que ele me encontrasse lá antes de irmos para a Rua Darte. Ele chegou, cumprimentou a todos, se apresentou. Nós nos falamos rapidamente, eu deixei ele conversando com o pessoal e fui para a cozinha buscar um copo d’água. Quando voltei, ele estava fazendo para todos os presentes a mesma pergunta que eu havia feito pouco antes. “Afinal, por que vocês falam em inglês entre si?”. Adiantei a resposta: “é que eles moraram fora e estudaram em inglês”. E o Jorge: “e daí? Eu também! Estudei a vida inteira na África do Sul e fiz faculdade lá, mas no meu país eu falo português!”

“Qual é a explicação, então”, perguntei. O Jorge, que tem 36 anos, não teve dúvida: “é essa geração antes da minha, que anda na casa dos 26, 27”. De fato, era a média de idade ali.

Pra mim, aquela era uma verdadeira tribo. E dessas que eu nunca vou entender mesmo. Definitivamente, não falamos a mesma língua.