Sobre aquele esqueleto no armário

Há uns meses, assisti a algumas entrevistas com o B. no YouTube. Escolhi precisamente aquelas em que o entrevistador o deixou bastante à vontade pra falar o que quisesse. Essa experiência me trouxe um alerta diferente daqueles clássicos que via circular na minha bolha progressista das redes sociais.

Eu venho de um meio conservador, tacanha e preconceituoso em muitos sentidos: racista, homofóbico, classista (nem sei como, mas…) e, inclusive, com exemplos de espírito autoritário. Isso considerando tanto a família quanto a vizinhança. Faz muitos anos estou consagradona no meu posto de ovelha negra e há quase duas décadas meu Natal é, digamos, meio alternativo. Ou passo com amigos, ou escolho a celebração com a menor concentração possível de familiares (sendo meu pai um ermitão, confesso que nem foi tão difícil assim). O último Natal no estilo casa cheia, aqui no Brasil, foi o de 1999 (Na Holanda, confesso, é mole. Lá não tem a piada do pavê e, mesmo que tivesse, eu não entenderia. Ô, Glória!).

Esse dado biográfico fez com que o sentimento predominante, ao ouvir o B., fosse o de um chocante reconhecimento: ele era/é a cara da maioria das pessoas com as quais convivi boa parte dos meus primeiros vinte anos de vida. Pensei, naquele momento, que seria um grande erro estratégico falar pra boa parte dos “meus” que B. era fascista.
Sei lá em que ambientes iluministas meus amigos circularam, mas na vida ouvi muita atrocidade de gente de bem que me amava. E nesses dias em que eu escutava B. atentamente, me veio a clareza de que a maioria dessas pessoas jamais aceitaria o argumento de que alguém como ele — “tão gente como a gente!” — fosse o equivalente tupiniquim de um Mussolini ou de um Hitler.

Minha experiência de vida (que, claro, é apenas um olhar possível e não dá conta do todo) me sopra a intuição de que o mal de que B. é porta-voz está há muito banalizado entre nós, entranhado em nosso tecido social e vem de longa data — embora eu admita e concorde que foram muitos os mecanismos utilizados perversamente para que esse mal viesse à tona.

Faço essa divagação não com o intuito de jogar uma pá de cal na nossa esperança, mas porque agora vejo uma luz no fim do túnel. Noto que boa parte dos meus amigos, com um espírito de luta incansável, resolveu mudar o tom e adotar uma postura mais empática e menos dona da verdade, até porque, gostemos ou não, o outro lado também se sente com a verdade.

No fim das contas, nesse momento de fratura e dor, me agarro em um otimismo que muitos chamariam de delirante, patológico até, e penso que estamos crescendo e nos tornando melhores. Apesar — ou talvez precisamente por causa — de. E, sobretudo, mais corajosos. Por absoluta falta de alternativa, bem verdade. Que seja.

O que a vida quer da gente é coragem

Faz um tempinho, estabeleci um princípio para balizar TODA e QUALQUER decisão na minha vida: nunca, jamais, em tempo algum, sob qualquer hipótese, fazer escolhas pautada pelo medo.

É um exercício penoso e diário, que envolve uma série de desconstruções. Especialmente pra quem nasceu e cresceu vendo todos ao redor meio acuados, meio desorientados e desesperançosos por conta dos solavancos a que estava submetida a imensa maioria das famílias brasileiras nas décadas de 1980 e 1990. No meu caso, era filha de funcionários públicos: de uma professora primária do Estado do Rio, que TODOS OS ANOS, lá pro mês de julho, precisava administrar os atrasos do salário, e de um engenheiro civil do falecido DNER, que se recusou a ir pra Brasília quando o Collor desmontou o órgão no Rio e precisou arcar com as consequências dessa escolha — entre elas, uma redução brutal de salário e o “terrorismo diário” (era a expressão que meu pai usava) envolvendo uma possível perda de emprego, mesmo sendo ele concursado.

Cresci sentindo e naturalizando o medo cultivado diariamente na nossa sociedade. Confesso que enchi o saco. Virei a chave e agora só faço escolhas pautadas pela coragem. É a minha forma de resistência. Vou votar no candidato que considero o mais preparado, por uma série de razões, sem a ingenuidade de achar que existem santos (até porque gosto mesmo é do mundo dos seres humanos, com todas as suas imperfeições). Simples assim.

Como dizia o sábio Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, o que a vida quer da gente é CORAGEM. E isto, agir com coragem, é a única coisa que espero e desejo para todos os meus amigos que acreditam na democracia e lutam por um país mais justo.

Anita

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Anita na padaria me esperando

Sabia que seria difícil dizer adeus pra casinha, pro quintal com bananeiras, visitado por araras, beija-flores e tucanos. Pro céu azul da Chapada, pro cheiro e pras cores do cerrado. Mas nada se comparou à despedida da Anita. Ela foi me escoltando até a rodoviária e, sem cerimônia, entrou na padaria e ficou assim, do meu lado, enquanto eu tomava café. Quando entrei no carro rumo a Brasília, ela quis entrar junto. Fechei a porta, ela pulou na janela do motorista. E agora estou aqui, na estrada, sem conseguir parar de chorar…

Ah, os cariocas…

Tá um frio danado aqui no cerrado. Hoje de manhã, por exemplo, fez 11 graus, com um vento louco e constante, apesar do sol e do céu azul.
Enquanto isso, em Juiz de Fora a sensação térmica foi de dois graus na segunda-feira, de acordo com a Tribuna de Minas (sim, eu li, hehe) e segundo os amigos que andam congelando por lá.
Mas os relatos dos cariocas são sempre os mais desesperados e engraçados. Meu preferido de ontem foi: “gente, este ano o inverno caiu na terça!”.
#brasisqueamo

Fãs de Harry Potter: não me invejem, trabalhem

Da minha alma vira-lata: passo uma semana nos lugares mais diferentes e quando vejo esqueço de onde vim. De repente, brotam uns sentimentos improváveis de pertencimento. Mas aí acontecem uns episódios meio inusitados, parece que feitos sob medida pra me lembrar da minha condição de forasteira. Tipo agora há pouco: voltei pra “casa” por uma estradinha de terra meio escura e fui recepcionada pela algazarra de três corujas na esquina.
#fãsdeharrypotternãomeinvejemtrabalhem

Sobre Antonio Candido

Vou confessar uma coisa que normalmente não se diz, sobretudo quando uma grande figura morre: li quase nada do Antonio Candido. Sim, é uma lacuna, das tantas que tenho, e vou passar a minha existência material tentando preenchê-las. E tudo bem.

Mas tem uma frase dele, sobre o Darcy Ribeiro, que me persegue há muito tempo, desde os meus 17 anos, quando li O povo brasileiro. Na contracapa do livro, havia um trecho da crítica do Antonio Candido sobre a obra, publicada na Folha de São Paulo. Reproduzo aqui:

Darcy Ribeiro é um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve. Não apenas pela alta qualidade do seu trabalho e da sua produção de antropólogo, de educador e de escritor, mas também pela incrível capacidade de viver muitas vidas numa só, enquanto a maioria de nós mal consegue viver uma.”

“…enquanto a maioria de nós mal consegue viver uma”. Essa frase me impactou muito na época. Ali, aos 17 anos, tracei uma meta: a de viver muitas vidas numa só. Lembro dessa meta/juramento com tanta frequência que vocês nem acreditariam. E sempre agradeço ao Antonio Candido por isso.

“Não pare, pois isso é uma forma de ajudar o mundo”

Hoje o Facebook me mandou um alerta para que eu autorizasse uma mensagem inbox de um evento acadêmico do qual vou participar. Pronto, foi a isca para que eu caísse na toca do coelho da Alice. Nesse limbo para onde vão mensagens daqueles que não constam na sua rede de contatos, havia obviamente várias que nunca tinha lido. Algumas eram de pessoas que me procuraram lá depois de me lerem aqui no Digerindo. Outras, de quem lera uma matéria da Você/S.A., sobre gente que deu um rumo novo na vida, e eu era uma das personagens por conta da minha decisão de pedir demissão e viajar pelo mundo em 2011.

Dentre as mensagens, destaco quatro, que tomo a liberdade de reproduzir aqui (preservando, obviamente, a identidade dos remetentes):

Em 20/02/2012:
“Olá Gisele, tudo bem?
Sou assinante da VOCE S/A e vi uma matéria sobre sua coragem de ‘largar mão’ de tudo e partir para uma aventura. Achei mto legal …
Me identifico com pessoas assim que adoram viajar, aventuras e queria apenas compartilhar contigo.Parabéns e sucesso ! Bjs”

Em 11/10/2013:
“Oi Gisele, Bom Dia!!
Tudo bem?/ Estava lendo seu artigo publicado no site Você S/A. Muito bacana sua história… Estive no Rio recentemente, me encantei por este lugar! Tenho muita vontade de largar tudo por aqui e sair do interior… estou planejando fazer isso em breve, e o Rio é um dos lugares que pretendo passar uma temporada, isso é ‘pessoal’ preciso sair… respirar novos ares, me sinto limitada!! hahhah… Histórias como a sua, entre outras… me inspiram. Vou ficando por aqui, abraços.”

03/01/2014
“Querida Gisele,
Li sua crônica 
‘Ao urubu que pousou em minha janela’e resolvi te escrever para agradecê-la, pois ontem um urubu pousou no parapeito da sacado de meu apartamento e graças a sua crônica, consegui acalmar um de meus familiares que entrou em pânico ao se deparar com o urubu. Parabéns pelo texto e minha gratidão pelas lindas palavras que nos fizeram repensar em muitas questões. Um abraço”

17/12/2015
“Gi! Vi seu blog, e ali encontrei a unica solução pros meus problemas Gostaria de dar uma desabafada, coisa que nunca contei pra ninguém Quem sabe você consegue me livrar da depressão? Espero que me aceite! Muito obrigado!”

Fiz questão de responder a esses quatro, por mais bizarro que possa parecer, mesmo depois de tanto tempo, tantos anos (para alguns) sem resposta. E olha que coisa, a pessoa da terceira mensagem me respondeu imediatamente, deste jeitinho:

“Sim!! não pare [de escrever], pois isso é uma forma de ajudar o mundo! Aliás, você só ter encontrado as mensagens há pouco tempo foi oportuno, pois hoje estava meio desanimada e a história do urubu me fez repensar em algumas questões. Além disso, será motivo de conversa com amigos hoje!! abs!!”.

Me despedi desejando a ela uma boa conversa com os amigos e prometendo que ia pensar com carinho sobre essa coisa de escrever como uma forma de ajudar o mundo.

No tempo da beleza em lá menor

A maior parte dos meus vinte e poucos anos eu passei acreditando que, se todos viemos ao mundo com uma missão a cumprir, a minha era “salpicar o Universo de beleza”. O jargão dava o tom daquela época, e se traduzia na forma como tentava conduzir minhas relações,  no peito aberto para os encontros da vida, na dedicação ao meu trabalho com jornalismo comunitário e educomunicação.

Disse diversas vezes aos meus companheiros de sonhos, nas noites regadas a pinga e utopia, que tudo perderia o sentido, e eu me perderia de mim, se algum dia me fechasse em conquistas individuais apenas (que talento para profecias…).

Trocando em miúdos, sempre quis lutar por algo maior, mudar o mundo, essas coisas da juventude, mas acho que falar em “salpicar o Universo de beleza” era uma maneira de conferir leveza a um sonho tão grande, pra não me sentir oprimida por ele.  Da minha condição de poeirinha cósmica, fizesse o que fosse, mesmo na potência máxima, se trataria sempre de humilde cosquinha no Cosmo.

Hoje lembrei daquela singela ambição e entendi como foi importante cultivá-la nos tempos juvenis de tantas incertezas e construções. Apesar das tantas voltas da vida, da poeira nos pés, dos calos nas mãos e de um inevitável peso no coração, acordei nesta manhã de notícias ruins e pensei que estes são tempos, mais do que nunca, de incertezas e, por isso mesmo, de construções.

Que a beleza então resista, mesmo que num surto de juventude fora de época,  e ainda que seguindo o tom destes nossos dias em lá menor.

 

Sobre mapas, trilhas e a criação de novos rumos

Eu realmente gosto de métodos. Podem me chamar de virginiana clichê, mas se tem algo que considero um desperdício de vida é bater cabeça tentando desbravar caminhos que já foram pra lá de sinalizados e demarcados. Às vezes me pergunto se não há nisso um traço cultural forte: somos bons de improviso, por que enrigecer nossa ginga com regras? Pois dou um bom motivo: eu, que nem Raulzito, tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar e não posso ficar aqui parada.

Entre as contribuições que gostaria de dar – ao mundo, aos jovens, sei lá – uma delas seria mapear todas as trilhas que abri na faca e falar: vai, moço ou moça, siga a partir daí, encontre seu próprio Paraíso, e não esqueça de pavimentar a estrada pro próximo. Porque é legal criar, mas sempre considerando o que já foi feito.

#ficaadica